Culpa da mamãe

Era uma quinta-feira ensolarada na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Estava excitado como qualquer pré-adolescente poderia estar com um brinquedo novo. Sairia em breve com minha mãe para comprar meu primeiro computador.

A “mama”, professora da rede pública, nunca mediu esforços para dar aos filhos cultura e educação. Mesmo nos anos de ditadura pelos quais passávamos e pela crise financeira que assolava nosso país por causa do grande milagre econômico de anos anteriores, ela se desdobrava trabalhando horas a fio na tentativa de manter seus filhos longe dos grandes problemas da sociedade que já começavam a despontar no horizonte. E vendo minha queda pelas “caixinhas pretas”, encontrou uma professora colega que estava se desfazendo de uma máquina e resolveu me agraciar com a mesma.

Tudo bem, não era uma mááááquina como temos hoje em dia. Na verdade mais parecia uma grande calculadora do que um computador de verdade. Era um TK-85 da Microdigital, empresa brasileira que naquela época fez dinheiro colocando dentro de caixas pretas com teclados “chiclete”, processadores Z-80 com a estupenda capacidade de memória de 16K (sim, isso mesmo, dezesseis kilobytes!), uma saída para televisão e uma saída para um gravador de fitas cassete onde os programas eram gravados.

Depois do acerto, voltei para casa com aquele ar de superioridade. Estava na vanguarda e podia ficar contando bravatas para meus amigos que eu possuía um computador em casa. Logo que entrei pela porta já fui tirando a máquina da caixa de isopor e pegando o manual para ler com a recomendação veemente de minha mãe: “veja se não tira as entranhas deste aparelho tá bem?!” (desde pequeno desmontava tudo o que via pela frente, relógios, rádios, ventiladores, etc. Era para “ver como funcionava” dizia e nunca mais conseguia montar).

Logo de cara percebi que tinha que aprender a programar. Junto com o manual existia um livrinho sobre a linguagem BASIC que comi no almoço junto com garfadas de feijão com arroz. Então, tinha um problema: se eu escrevesse todo o programa na memória e desligasse o computador, perdia todo o trabalho. A solução então era gravar em uma fita cassete. Resolvido, meu pai tem centenas de fitas com clássicos do mundo todo e um bom gravador (neste dia seu gravador e algumas fitas de Mozart foram devidamente ceifadas de seu convívio).

Liga o gravador no computador (digo, máquina) e na TV para começar a fazer o primeiro programa. Coisa simples, um cursor piscante que pedia a entrada de dois números para fazer a soma dos mesmos. Mas estava lá! Depois de uma hora de trabalho digitando naqueles quadradinhos pretos chamados de teclas e alguns erros (poxa, eu tinha onze anos!), executo o programa e ele pede o primeiro número, o segundo e logo depois me dá o resultado. Vitória! Saí correndo para chamar a minha mãe e ver meu progresso.

Cuidadosamente gravei o programa na fita para depois poder recuperar e comecei a escrever outro, agora com GO TO’s que iam para cima e para baixo de acordo com opções que formava em minha cabeça. Em pouco tempo já dominava não somente a linguagem, mas também a lógica de programação que se mostrou a principal ferramenta nos anos futuros.

Encontrei numa banca de jornal perto de casa uma revista chamada Microsistemas. Ela trazia vários programas prontos para copiar e executar na maquineta. Com minha mesada e mais alguns trocados adquiridos com a venda de caixas de ovos para feirantes perto de casa, comprei uma e comecei a evoluir na programação com sistemas mais complexos, cheios de variáveis, laços, loopings e outras coisas mais. Meus amigos iam jogar bola na quadra da escola e eu ficava horas a fio programando e gravando o que fazia nas fitas cassetes.

Belo dia, meu velho queria ver meu progresso. Todo feliz, coloco uma das fitas surrupiadas de sua coleção no gravador para carregar um dos programas mas nada de acontecer o esperado. Tento novamente e nada. A fita parecia estar vazia e fazia de tudo para mostrar alguma coisa, afinal o ex-dono do gravador e daquela fita estava atrás de mim e não podia dar vexame. Não teve jeito, nada fazia o programa ser carregado. Então rapidamente escrevi um pequeno que sabia de cabeça (aquele primeiro que fazia somas) e mostrei à ele. Aparentemente satisfeito disse que era para me esforçar porque no futuro nossa vida e nossa sociedade dependeria totalmente de computadores. Nunca imaginei se ele era um vidente, médium ou simplesmente previa o futuro.

Passou o tempo e aquele antigo TK-85 não mais me satisfazia. Precisava de algo mais desafiador, mais potente. Com este pensamento na cabeça, saí atrás de um MSX da Gradiente, outra máquina com processadores “da antiga” mas que tinha uma configuração melhor. Com venda de dezenas de caixas de ovo e jornais velhos que meu pai assinava (e lia sistematicamente 5 diferentes publicações todos os dias), consegui comprar aquele novo computador. Mesma coisa, liga na TV, liga no gravador e começo a programar mas, desta vez, testei cada byte que ia para a fita. Tudo ok. Dias depois, na tentativa de carregar o programa antigo, nada. Nem sinal de vida. Uma frustração.

Após milhões de linhas de código programadas em linguagens que foram desde o antigo BASIC até Objective-C de iPhone, passando por Clipper Summer 87, Turbo Pascal, Cobol, Fortran, ASP, CGI, ColdFusion, HTML, PHP, XHTML, XML, Perl e tantas outras, olho para trás e revivo com nostalgia e carinho aqueles meus primeiros momentos com um computador e fico imaginando o que poderia ter sido diferente. Será que se não tivesse ganho um TK-85, seria hoje um advogado? Um engenheiro? Vai saber.

Hoje quando se comemora o dia das mães, não teria como agradecer a minha de forma diferente. Nerd que é nerd traz recordações de computadores e disquetes de 5 ¼ e mesmo assim, faltam palavras que mostrem o quanto sou grato por aquele TK-85 e pelo ato de minha “mama”. Hoje, mais de vinte e cinco anos depois, lembro de cada detalhe e principalmente da certeza que ela trazia estampada no rosto de que aquele seria meu futuro.

Ah, e quanto ao gravador, descobri anos depois o que se passava. As pilhas ficavam fracas e com isso mudava-se a rotação do motor que não permitia a correta transferência do programa de volta ao micro. Bug, claro!

3 comentário em “Culpa da mamãe

  1. marco

    Paulino… que bela historia meu amigo

    minha primeira maquina foi um tk82c, com 16k tb, e espansor de 2k! e aquele tecladinho de pense bem haahah .. lembro como se fosse hj, eu jogando REX, um monstro que corria atras de vc em um labirinto.. era tosco mas eu adorava!

    quando eu tinha uns 10 anos, minha avoh tirou de mim o computador, pq eu nao queria fazer mais nada, nao dormia e etc.. ahaha… ela disse que eu ia ficar cego na frente da tv (uma telefunken de fosforo verde, onde eu assistia pirata do espaco na antiga rede manchete)

    muito boa sua historia, obrigado por todas essas lembrancas!

    um abraco!

    Marco

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