Praia, sol e inclusão digital

Queria ter escrito um artigo sobre a visita que fiz em Pipa mas, devido as coisas que vi e ouvi, creio que um relato sobre tudo é muito mais interessante e explicativo. Assim, aqui estão as minhas impressões sobre mais um projeto de inclusão digital que tive a oportunidade de conhecer e ajudar.

Pipa é um vilarejo escondido no litoral sul do Rio Grande do Norte, entre João Pessoa e Natal. Um pequeno distrito da cidade de Tibau do Sul rodeado de falésias e praias, muito sol e as mais deslumbrantes praias que já conheci no Brasil. E neste cenário paradisíaco, a população local começa tomar contato com computadores e com o software livre pelas mãos de um arquiteto paulista lá radicado que faz, de seu dia-a-dia, o trabalho de ensinar e aprender com todos aqueles que conhecem tudo do mar, mas estão isolados, social e digitalmente.

Para este paraíso, atendendo um convite do colega Maurício (o arquiteto), fui no mês passado junto com o amigo Anahuac de Paula Gil conhecer e ajudar o projeto “Pipa Sabe”. Um trabalho de inclusão digital voltado à população local que, por meio de computadores doados por uma instituição federal e com parceria com a Cidade do Conhecimento da USP, disponibilizam cursos básicos de informática e acesso à Internet para os cidadãos locais, mediante uma unidade de “telecentro”.

Como funciona a inclusão digital em Pipa
À primeira vista você pode estar pensando que inclusão digital é tudo a mesma coisa. Computadores de primeira linha, prédio bonitinhos, conexão para a Internet de alta velocidade, funcionários bem pagos e assim por diante. Isso é o que vemos e ouvimos sobre inclusão na Europa, em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Em Pipa as coisas são diferentes. Eles possuem uma antena do Gesac disponibilizada pelo Ministério das Comunicações, alguns computadores doados (7 máquinas, das quais 3 estão em funcionamento), um espaço público dentro da escola municipal de Pipa e muito improviso (como poderá ler adiante). O que é similar em outros projetos que pude conhecer é a garra e vontade das pessoas que lá trabalham e também o software livre que roda em todas as máquinas. No restante…

…A realidade é bem diferente
Antes de lá chegar, imaginava vários cenários possíveis mas não estava preparado para o que vi. Simplesmente era diferente de tudo aquilo que conhecia sobre projetos de inclusão digital e telecentros, podendo inclusive ser chamado de “dantesco”. Os computadores são antiquíssimos (para não chamá-los de máquinas de escrever), as instalações extremamente precárias (com fio de telefone trazendo energia), uma sala com goteiras, móveis improvisados, cadeiras mancas e, como não poderia ser diferente, as eternas brigas do coronelismo nordestino que teima em se manter vivo, atrasando qualquer tentativa de mudar a vida e a situação de nosso povo. Discussões por causa da localização da antena, por causa do ponto de energia, por causa da sala que vai abrigar as máquinas e etc. Tudo é motivo para que dois ou mais estúpidos possam, com suas mãos de ferro, mandem e desmandem na inclusão digital deste pequeno povoado. Mas no meio de todos estes poréns, eu podia ver o brilho nos olhos da garotada que ficava fascinada com a máquina ligada e o Gnome rodando. Uma cena de encher o coração de qualquer um com a esperança que as coisas podem mudar (espero).

No meio disso tudo existem algumas máquinas desligadas. Perguntei ao Maurício o que acontecia e ele simplesmente disse que estavam assim por “motivos de força maior”. Este motivo é o seguinte: energia elétrica. O eletricista da prefeitura “proíbe” que sejam ligados mais de 3 computadores na mesma tomada, alegando os absurdos mais interessantes possíveis (principalmente para mim que cursei dois anos de eletrotécnica). Desta forma, ficam as máquinas lá paradas e sem uso, esperando a boa vontade de alguém ou ainda a “exoneração” do tal eletricista para que tudo funcione.

Claro que a “coisa toda” não funciona por sí só. É preciso muito mais que máquinas ou espaço. É preciso gente com vontade de fazer alguma coisa. E Maurício é uma destas pessoas que valem quatro, cinco, dez vezes mais seu peso em ouro puro. Formado em arquitetura pela USP de São Paulo, teve a oportunidade de se mudar para Pipa e fazer o projeto deslanchar. De fala mansa e andar tranquilo, ele é incansável e dedicado, inventando as mais mirabolantes formas e jeitos para que todos possam aprender e utilizar os computadores e o espaço existente. Junto com ele, vários voluntários trabalham árduamente para manter tudo 100%. Uma destas pessoas, a qual não poderia deixar de citar, é Norma Fagundes. Moradora efetiva de Pipa há alguns anos, é proprietária de uma pequena e aconchegante pousada (Norma, me aguarde ai!) e também mais ou menos a “prefeita” do local. Conhece todos, briga por todos e, com seu sotaque rasgado, faz com que o projeto que possui pouca verba, mantenha-se funcionando. Tal qual Maurício, é uma pessoa das mais valiosas e maravilhosas que conheci e que poderia certamente se candidatar a qualquer cargo, sendo eleita sem sombra de dúvida (mas a ela não interessa).

Nossa ajuda para Pipa
Não pudemos ficar de mãos atadas vendo tudo aquilo. Anahuac com seus fartos conhecimentos técnicos, simplesmente pôs-se a colocar as máquinas funcionando com a solução LTSP, de Jim McQuillan pois, até então, elas funcionavam de uma forma interessante: tunelamento da interface gráfica em SSH. Algo inimaginável para nós técnicos mas a única solução que o arquiteto conhecia para colocar as máquinas em rede (lembre-se, eram máquinas de escrever e não computadores). Depois de 6 horas sob o servidor e algumas liigações para nossos “how-to’s” ambulantes (Cristhiano Anderson e Daniel), Anahuac arredonda a coisa toda com uma pequena interface X (XFCE) e coloca todos na rede com o melhor existente para este tipo de caso.

De minha parte, auxiliei como podia com as máquinas, mas já confirmando minha presença para ministrar aulas de programação web e bancos de dados naquela comunidade. Além disso, a informática básica e os conceitos sobre software livre serão assunto para os participantes em várias palestras e mini-cursos que estão sendo programados.

Finamente, minha impressão
Sinto-me realizado e frustrado ao mesmo tempo. Realizado por poder ajudar aqueles que precisam realmente de ajuda mas frustrado por não poder fazer mais. O pior de tudo é que isso ocorre em todo o país. Projetos e pessoas de primeira linha são esquecidos ou andam em passos de tartaruga por vários motivos, seja por causa de um eletricista, seja por causa de um software mal feito e mal configurado, seja por causa dos coronéis e “dotôres”. Inclusão digital e inclusão social devem e tem que ser política pública, tal qual saúde e educação. Não é possível nos furtarmos deste modelo. Mesmo com a precariedade que presenciei, pude observar que as coisas mudam, que as pessoas mudam. Alguns dos frequentadores já procuram algum curso ou informação adicional sobre áreas correlatas e as máquinas estão mudando a forma de pesquisa e absorção do conhecimento de vários estudantes. Então, temos que fazer centenas de telecentros como estes em todo o país. Temos que aproveitar o momento hoje existente de um governo do povo para fazer aquilo que não foi feito pelo sociólogo, pelo aventureiro camaleão, pelo “escritor” e pelos milicos.

Mas temos que fazer certo. Não são Anahuac’s, Paulino’s, Maurício’s e outros que podem fazer sozinhos. Podemos ajudar quando nos é pedida ajuda. Mas não podemos perder tempo para ficar corrigindo erros de técnicos incapazes que vão instalar uma antena e/ou sistema e não sabem o que estão fazendo. Temos que fazer certo para fazer uma vez somente. Não podemos esperar mais.

Enfim, somente tenho a agradecer pela oportunidade àqueles que nos receberam de braços abertos e dezenas de pendências. Voltaremos mesmo quando não solicitado.