Um níquel de volta

Como um um sonho sai de temperaturas abaixo de zero e trinta centímetros de neve para torna-se um sucesso em todo o mundo? Será que podemos fazer o mesmo em temperaturas mais amenas com o software livre brasileiro?

Enfiada no meio do nada da província canadense de Alberta está Hanna, uma cidade típica de interior que não possui mais de três mil habitantes (algo como um prédio comercial de uma grande cidade), meia dúzia de restaurantes e um investimento imobiliário que não ultrapassa o valor de duas coberturas num bairro nobre do Rio de Janeiro. Com temperaturas que variam entre 17 graus no verão até gélidos 16 negativos no inverno com trinta centímetros de neve, ela é o berço de uma das maiores bandas do hard rock (ou post-grunge) mundial; Nickelback.

Após 25 milhões de álbuns vendidos, prêmios como Grammy, MTV Music Awards e a entrada em vários charts mundiais como Billboard e US Top 100 propiciadas por hits como How You Remind Me, Photography e Far Away, Nickelback tornou-se não somente um sucesso de vendas e de grana para seus quatro integrantes, mas também um sucesso para o governo canadense. Não entendeu? Explico: o governo canadense mantém dentro do Ministério do Patrimônio (algo como o Ministério da Cultura brasileiro) um programa denominado Sound Recording Development Program que tem como principais objetivos financiar artistas e empreendedores da área musical para entrar no mercado nacional e internacional bem como ampliar as oportunidades existentes para estes artistas a fim de alçarem vôos sozinhos e com isso levar o nome de seu país e as cores de sua bandeira para fora das fronteiras do Ártico.

Mas qual o resultado prático disso? A resposta: Alanis Morissette, Avril Lavigne, Celine Dion, Nelly Furtado e Nickelback (só para citar alguns) que juntos formam mais de 120 milhões de discos vendidos em todo o planeta, saíram ou tiveram em suas carreiras apoio governamental. Com isso o Canadá é hoje o segundo maior mercado de criação fonográfica do mundo, um título que certamente qualquer país gostaria de ter. E o que isso tem a ver com o clima tropical de nosso país e mais precisamente com o Software Livre? Acredite, muita coisa.

No apagar das luzes do mês de fevereiro a imprensa nacional ventilou um projeto de lei apresentado em novembro do ano passado pelos deputados Paulo Teixeira (PT-SP) e Jorge Bittar (PT-RJ) para uso de 20% do Fundo Setorial para Tecnologia da Informação (CTInfo) com o intuito de financiar projetos de software livre nacionais. O projeto está em tramitação anexado a outro projeto (3.684/04) de autoria do deputado Carlos Eduardo Cadoca (PSC-PE), o qual trata de redução de juros para empréstimos financeiros à empresas que desenvolvem software livre e que juntos poderiam sem dúvida nenhuma fomentar uma nova indústria em nosso país, além de criar um expertise para atender quaisquer demandas nacionais e internacionais e elevar o nome de nosso Brasil para um patamar bem diferente daquele que nos encontramos hoje quando falamos em desenvolvimento de softwares.

Como nem tudo são flores, ambos os projetos possuem resistência tanto dentro da própria câmara quanto por nós mesmos brasileiros. O primeiro projeto passou por dois relatores diferentes (Dep. José Mendonça Bezerra (DEM-PE) e Dep. Dr. Nechar (PV-SP)) que votaram de formas diferentes. O primeiro vota pela aprovação com algumas emendas de cunho operacional (prazo de regulamentação e melhor definição do que é Software Livre). Já o segundo rejeita o projeto, principalmente (mas não somente) pelos seguintes pontos:

  • falta de incentivo econômico ao desenvolvimento de software de alta qualidade, tendo em vista que as empresas que atuam nesse mercado podem cobrar apenas pela manutenção dos sistemas;
  • custos de implantação de soluções baseadas em software livre superiores aos verificados nas soluções tradicionais, em decorrência da ausência de padronização;
  • dificuldade de comprovar que determinadas empresas trabalham exclusivamente com desenvolvimento de sistemas baseados em software livre;

Estarrece-me o voto do relator que de duas uma, ou não possui assessoria técnica sobre o assunto ou a assessoria que possui é nativa do ambiente do software proprietário que não deseja ver o dinheiro público sendo investido, não em software livre, mas na criação de conhecimento e no fomento da indústria nacional. Esta sensação advém principalmente da leitura dos seguintes parágrafos do voto do relator:

O fato é que setor de tecnologia da informação é extremamente importante na economia brasileira. Responde, segundo a FIPE, Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP, pela criação de mais de trezentos mil empregos diretos. Está submetido a uma carga tributária de quase quarenta e cinco porcento, e tem reflexo transversal em toda a competitividade da economia brasileira, tendo em vista que seus produtos inserem-se em todas as demais cadeias produtivas.

Esse contexto nos leva a concluir que tais modificações em sua estrutura não são producentes, pois podem afetar negativamente uma indústria responsável por milhões de empregos diretos e indiretos, por significativa parcela de arrecadação tributária e que contribui, de forma significativa, para a competitividade da economia brasileira.

Não acredito que exista, por mais cruel que seja, brasileiro desejoso de “milhões de empregos diretos e indiretos” jogados no lixo. Ao contrário, queremos sempre ver nossos filhos e netos capazes de estudar e obter um emprego que propicie aquilo que denominamos cidadania. O projeto do deputado Cadoca (e consequentemente o software livre) não é ferramenta que visa ampliar ainda mais a taxa de desemprego atualmente vivida na área de tecnologia (e em todas as outras) de nosso país. Ao contrário disso, deseja fomentar o conhecimento, a criação de novas nano, micro e pequenas empresas capazes de competir em qualidade e capacidade de desenvolvimento com parques hoje dominados pelos países do leste europeu e Índia e também gerar mais empregos e mais divisas para todos nós. Mas como fazer tudo isso sem auxílio e com as taxas absurdas de juros praticadas tanto pelas instituições oficiais quanto as particulares? Como permitir que o pequeno se torne grande sem apoio?

O paralelo pode ser traçado facilmente com o programa canadense de desenvolvimento cultural, onde está inserido o programa de desenvolvimento musical. Qual será a relação entre o investimento governamental e o retorno em empregos, visibilidade e impostos gerados por mais de 120 milhões de discos? Qual é o retorno propiciado por artistas mundialmente famosos para seu país de origem? Não falo somente daquilo que é direto, mas também daquilo que é indireto e que poderia passar sem ser visto como a locação e contratação de estúdios, artistas, gráficas e fábricas nacionais devido a qualidade apresentada pelos artistas oriundos daquele país. Lá o investimento no pequeno, no nano, não é considerado perda de empregos ou de receita, ao contrário, é considerado patrimônio do país e política pública.

O segundo ponto: nós
Alguns comentários encontrados na Internet sobre a divulgação do projeto de lei trazem como foco a descrença de nós brasileiros com o “oba-oba” advindo do planalto central quando o assunto são projetos que visam algo que não seja imediato ou que não atenda qualquer catástrofe que venha a acontecer. Esta sensação foi e é gerada pelos anos de desmandos, medidas provisórias, ineficiência e outros tipos de açoites que nosso governo nos propicia. Entretanto é necessário mudar a visão de que “tudo aquilo que de lá vem” é ruim ou danoso à nossa sociedade e este é um exemplo claro do assunto.

Quando fala-se em investimento governamental em software livre, não se fala em investimento perdido ou jogado na lata do lixo (pelo menos penso assim) e tampouco em “produto software livre”. Se assim fosse, poderíamos parar com os investimentos feitos em pesquisas sobre antropologia cultural indígena, já que os que sobreviveram ao “descobrimento” estão enfiados em suas pequenas comunidades e esquecidos de todos (ledo engano). Deixar estas pesquisas de lado é o mesmo que deixar de lado o conhecimento humano que temos ou que podemos ter e que não só passa por indígenas mas também por biotecnologia, astronomia, hidrologia e desenvolvimento de software.

O financiamento, redução de carga tributária ou taxas de juros para “software livre” não é destinada a criação de programas de computador somente. É destinada a criação de todo um modelo ecossistêmico que abrange desde o conhecimento fomentado e compartilhado até o empreendedorismo de pequenos negócios e empregos. Não fala-se somente em propiciar mecanismos para a produção de aplicativos para supermercados, locadoras de DVD e padarias, mas também todo um conjunto de soluções que atendam os mais diversos e variados segmentos da sociedade moderna chegando ao apoio ferramental à pesquisas ou ainda a soluções para todos nós como é o caso do Ginga e do Cacic.

Neste intuito, ao meu ver, ambos os projetos pecam pois impõem restrições que não seriam necessárias e que somente ampliam a burocracia que engessa nossa vida. Restringir, por exemplo, o acesso ao fundo e/ou as taxas de juros mais baixas somente a “empresa de desenvolvimento de programas de informática há pelo menos um ano” ou ainda a “empresas, universidades, institutos tecnológicos, centros de pesquisa, cooperativas e outras instituições públicas ou privadas, inclusive comunidades de desenvolvedores”, deixa de fora várias idéias e/ou desenvolvedores que muito podem contribuir mas que não se enquadram em nenhuma destas categorias por serem projetos embrionários, pequenos ou que até mesmo esperam por uma oportunidade destas tais como Jegue Panel, txt2tags, KinuxLinux e outros.

Alguns podem dizer que isso pode “abrir a porteira” para que aventureiros ou para aqueles que desejam uma grana fácil. Nada disso acontece pois os mecanismos são simples para coibir: um projeto realmente escrito, documentado e fundamentado, o constante monitoramento do que está sendo feito e uma licença de software livre aceita pela FSF. Com três simples parâmetros os que desejam “brincar” de fazer software livre ficam de fora, seja pelo projeto ou ainda pelo licenciamento.

Porém antes disso acontecer é necessário criar outros mecanismos paralelos aos projetos (que não foram destilados em minha opinião), que são: como monitorar, como averiguar o projeto e principalmente o que fazer com o resultado desta criação. Se a cadeia toda não for fechada com mecanismos que permitam a divulgação do produto nacional e o uso efetivo do mesmo, pode-se investir milhões que o produto não deixará de ser algo localizado e regionalizado, que certamente não é o intuito de ambos os projetos. Tal qual o ministério canadense, tem-se que criar mecanismos para que aqueles que entraram no estúdio possam lançar suas criações no mundo e todos obterem os dividendos da operação e obter seu níquel de volta, ou Nickelback.

1 comentário em “Um níquel de volta

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